sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Esperando por você


Jonas corria desesperado entre os entulhos de infinitas construções destruídas. O céu noturno que outrora refletia a escuridão no coração dos homens estava vermelho em chamas de guerra. Recife queimava pela ira do Führer.

- Tem que dar tempo! Eu tenho que conseguir! - Ofegava, pois não tinha tempo de recuperar seu fôlego, a determinação que nasce do desespero trazia à tona toda a força que precisava para continuar correndo. - Não acredito que Alicia fez isso comigo.

Tropeçou nos destroços que falhou em ver, uma pequena falha, tentou se equilibrar em vão, mas o erro lhe rendeu um mergulho de um andar em um edifício que costumava ser uma repartição pública. Caiu feio, de mau jeito, sentiu suas forças criadas apenas pela adrenalina se esvaírem e de repente perdeu a consciência.

Quando acordou não sabia quanto tempo tinha perdido, mas parecia que havia perdido eras, o que era noite agora mostrava as primeiras luzes do sol e a morte da esperança de alcançar Alicia antes que ela entrasse ano transporte. Sentiu-se impotente, então Jonas chorou. Chorou como qualquer humano que tem direito de gritar por algo que não consegue sozinho. Esqueceu os sons dos tiros e dos canhões que perfuravam a alma de sua cidade amada. Esqueceu que estava, ainda, em meio a um campo de batalha.

- Arr!! Deus! Não falo com você há décadas, mas olha para mim agora. Permita que eu corrija meu erro.

Jonas sentiu uma presença se aproximando. O som de passos num terreno tão destruído é muito difícil de esconder. Tentou buscar a arma, mas o visitante era rápido e chutou a pistola que carregava no cinturão para longe.

- Hum... É raro ver alguém que viu tanta guerra, ainda acreditar em Deus. Mas ainda não decidi se essa demonstração de fé não se trata na verdade de desespero apenas.

A voz falava português e era muito familiar. Respirou fundo em alivio, não era o filho da puta de um nazista. Reconheceu seu colega de combate. Anos de experiência nessa guerra atroz desde que o Eixo fascista decidiu que o Brasil deveria cair.

- Daniel! Ajuda-me. Alicia pegou meus documentos e foi para a linha de frente em meu lugar!
- O que?! Como você deixou isso acontecer? Que tipo de marido você é? Pensei que ela estaria segura com você.


O silêncio foi uma resposta que Daniel não esperava. Quando Jonas pensou em falar algum tipo de artilharia explodiu por perto e o prédio onde estavam tremia como um terremoto. Sua estrutura não agüentaria mais muito tempo.

- Você não tem nada a dizer?
- Ela me prendeu na cama. Pegou meus papeis e se foi.

Daniel caminhava de um lado para o outro. Pensativo, pois claramente escolhia as palavras que falaria com cuidado.

- Eu sei Jonas. Eu a vi. Por isso vim te procurar. Saber o que aconteceu com você. Ela não se passou por você usando seus documentos, provavelmente os levou como lembrança, ela apenas entrou no quartel e pediu por uma arma, logo foi aceita no mesmo pelotão que você. - Mirou nos olhos do amigo as próximas palavras. - Eu a vi subindo no transporte a não muito tempo.

A raiva substituiu a tristeza e logo o soldado se recuperava da queda, não poderia correr, mas ao menos começou a se mover novamente em direção ao quartel. Se ela estava na linha de frente, ele também iria e, chegando lá, a protegeria de qualquer coisa. Daniel vendo o amigo se esforçar se posicionou para ajudar o colega a caminhar apoiando o ombro.
Depois de um tempo de caminhada Jonas deixou escapar sua revolta.

- Como o comandante se atreveu a aceitar ela? Minha mulher? Esta traição não ficará impune.
- Esses são tempos difíceis. Faz um tempo que o desespero tomou conta do alto escalão. Estão aceitando todos, crianças, mulheres, idosos. Qualquer um que consiga atirar uma arma.

Jonas notou algo. Virou-se para o companheiro e com força o segurou pela gola do uniforme. Jonas era forte e conhecido por tal. Daniel não reagia enquanto seu amigo gritava com o rosto próximo do seu.

- E você? O que você está fazendo aqui!?
- Calma, Jonas! Eu tenho uma missão diferente agora. Diferente de apenas fazer buracos nos inimigos. Um trabalho fora do exercito e bem complicado se você me permite dizer.

Jonas fez uma bela base nas pernas e juntou suas forças o suficiente para lançar o amigo na parede. Sua voz estava triste e buscava desesperadamente consolo.

- Ainda me soa como deserção. Não importa Daniel. Talvez se eu tivesse feito o mesmo eu não estivesse nessa situação.
- Garanto-te que eu não fugi. Nem pensei em fugir. Mas você quer minha ajuda ou não.


Jonas se apoiou numa pilastra, mas esta estava destruída, e logo cedeu levando o Soldado Junto. No chão ele virou-se para o amigo que caíra num local podre onde ratos faziam ninhos:

- Porque você não a levou com você? - Não olhava no olho companheiro. Esse era um assunto que o incomodava bastante. - Eu sei que você a amou também.
- Eu não poderia Jonas. Não era justo com ela. Ela não estava pensando em nada mais, além de você.
- Por causa disso você a deixa para a morte?

Mesmo desafiando a dor ele se moveu rapidamente surpreendendo Daniel que se preparava para se levantar e socou fortemente o ouvido direito que cambaleia e vai desmoronar novamente na podridão que se encontrava. Dessa vez sem o apoio do amigo, Jonas perde a forca das pernas e também cai.

Daniel se levanta ainda calmo, mas sua face esboçava a face de quem não tinha gostado da demonstração de força. Limpou-se rapidamente da podridão em que fora lançado, respirou fundo e finalmente ajuda o companheiro machucado a andar, mas se aproximou com cautela para não ser atacado novamente.

- Eu vim te buscar amigo. - A voz de Daniel estava diferente, era aconchegante e passava a impressão que nada podia atingi-lo, nem toda violência que Jonas poderia gerar. - Nós vamos buscá-la agora. Não é? Não é isso que você deseja? Por deus vocês dois são muito complicados.
- Você sabe onde ela esta Daniel?
- Você sabe também. Ela esta onde deveria estar. Onde você a deixou.
- Porque você não fala mais claro.
- Amigo, está na hora de se lembrar. Para ir buscar ela, você tem que se lembrar, ou não será capaz de vê-la. Tem que se lembrar o que aconteceu com você?
Depois de alguns instantes, pensativo, Jonas retornou confuso:
- Ajuda-me. Do que você esta falando? Algo me martela agora na cabeça, mas eu não sei dizer o que é.
- Como Alicia conseguiu prender um homem do seu tamanho na cama?
- Eu... Eu penso que estava dormindo.
- Era realmente dormindo que você estava?
- Daniel. Onde você quer levar? Diz logo! Eu não acredito em mais nada que você diz!
- Não era dormindo que você estava.

Lagrimas caíram do rosto de Jonas enquanto ele se lembrava da verdade. As poucas palavras com seu companheiro fizeram com que algo estalasse dentro dele e uma cachoeira de lembranças viessem a tona. Lembranças escondidas e trancafiadas por não conseguir lidar com a verdade. Ele fora a guerra, durante três anos defendeu o Recife dos Nazistas. Em meio ao calor de uma batalha, recebeu um ferimento que só o mataria horas depois, deitado em sua cama com Alicia em seu colo jurando amor eterno.

Ele lembrou que decidiu não descansar enquanto não ver Alicia segura daquele mundo insano onde o homem é o predador do homem. Ele não iria sem ela. Almas gêmeas são assim, ficam juntos até depois da morte.

- Daniel eu lembro. Lembrei de quase tudo. Mas e você companheiro? O que está fazendo aqui? Lembro de você vivo na ultima vez que te vi.
- Morri rápido e com consciência tranqüila. Fui o ultimo brasileiro a morrer na defesa de Olinda. Então não me chame novamente de desertor.
- Quando?
- Antes de você algumas semanas.

Jonas se lembrou que não sentia mais dor e que não possuía mais um corpo para quebrar, logo, recuperou suas forças e virou-se para o amigo. Ele parecia ansioso e assustado.

- Você disse que vamos buscá-la hoje? Ela morre hoje? Tão jovem?
- Sim e não. Hoje é o dia que ela parte para próxima vida, mas ela não esta mais tão jovem.
- Por deus homem do que você esta falando. Quando eu morri, ela tinha vinte e dois anos.
- Você precisa tomar conhecimento do tempo em que estamos. Assim saberás o tempo que passasse preso em tua própria consciência.

Jonas estava atento. Ele entendia plenamente o significado das palavras que Daniel falava. Uma sabedoria começou a invadi-lo no momento que ele se abriu a ela.

- A segunda guerra acabou Jonas. Alicia morre hoje de velhice. Ela tem quase noventa anos.
- O que eu estive fazendo todo esse tempo?
- Você procurou por ela nesse mundo que você mesmo criou. Por quase sessenta anos você correu, caiu, feriu-se, matou, morreu procurando por ela nessa batalha que é o retrato de suas memórias daquela época.

Eles pareciam em paz. O cenário de guerra foi paulatinamente sendo substituído por um quarto de hospital, onde uma senhora jazia deitada na cama e cercada de familiares e amigos. O ambiente era de dor. Uns mais fortes tentavam consolar os outros que choravam copiosamente. O tempo passou e ele escutou palavras bonitas sobre Alicia e sobre o modo que ela levou a vida. Menção sobre o amor de sua vida e sobre as batalhas, não apenas as armadas, mas as batalhas que uma mãe viúva tem que passar. Enfim chegou a hora que seu coração parou e os médicos desistiram de trazê-la de volta a vida.


Alicia pôde passar para o outro lado. Logo pode ver Jonas a esperando. Abandonou o aspecto da velhice recuperando a aparência que mais lhe agradava, a do tempo que viveu com Jonas. Daniel não se fazia presente, pois seu trabalho havia terminado.

Depois de se tocarem e abraçarem, Jonas ainda sem palavras na boca escutou o que sua esposa tinha a dizer.

- Eu sempre soube que você estava comigo - Ela o abraçou carinhosamente - Obrigado por me esperar.

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